11.10.07

Apagar a História

Para o bem ou para o mal, foram os "nacionais" que ganharam uma guerra civil em Espanha que durou quase três anos. De há uns anos para cá, uma parte da sociedade espanhola não pretende apenas que seja feita justiça às vítimas da violência “nacional” que acompanhou aquela guerra civil e, depois, dos crimes que se revelaram umas vezes essenciais, outras dispensáveis, para consolidar o franquismo.
Essa parte da sociedade espanhola quer, e pensa que pode, ganhar a guerra civil 60 ou 70 anos depois. Pretende fazê-lo de várias formas. Mas também apagando da vida pública espanhola aquilo que resta de cerca de 40 anos da história de Espanha no século XX, por mais sombrios que os possamos considerar. Aliás, não foram apenas sombrios esses 40 anos de franquismo, porque todas as ditaduras sempre tiveram, e ainda têm, zonas de luz e de sombra.
Essa parte da sociedade espanhola pretende um ajuste de contas com os vencedores e, sobretudo, retomar a história de Espanha em Julho de 1936, o que, aliás, nunca será mais do que um regresso ao ambiente de violência feroz que conduziu ao pronunciamento militar fracassado daquela data e subsequente guerra civil. Como se pode constatar facilmente esta atitude é mesquinha e, sobretudo, muito grave, porque está a reintroduzir em quase todos os quadrantes políticos um radicalismo de palavras e uma violência de gestos que não auguram nada de bom. Ou seja, e basicamente, está-se a destruir o consenso em torno da “transição pactuada” que conduziu à Espanha que conhecemos até ao dia em que Zapatero e o PSOE ganharam as eleições legislativas, mas que já germinava nos quatro anos que durou o último governo de José Maria Aznar.
Sendo a Espanha o único Estado com o qual temos fronteira terrestre desde que o nosso império colonial se foi, devemos estar atentos e preocupados com aquilo que se passa aqui ao lado, para além do terrorismo da ETA e do triste fenómeno dos nacionalismos, seguros porém de que o futuro nada trará de bom, arriscando-se a Espanha a regressar à instabilidade política e social endémica que conheceu desde o início do século XIX até ao momento em que se aprovou a Constituição que (ainda) vigora. Àqueles que pensam que a prosperidade económica evitará o pior, apenas me ocorre dizer-lhes que não conhecem nada da história de Espanha nem da história da Europa.
Como seria de esperar, há em Portugal quem aprecie uma lei perversa publicada recentemente em Espanha, uma lei dita da "memória histórica", e que se caracteriza, entre muitos outros aspectos, alguns deles louváveis, por impor que sejam retirados dos espaços públicos praticamente tudo aquilo que evoque os tempos do franquismo, como se este nunca tivesse existido e não tivesse, por exemplo, merecido o apoio empenhado e convicto de milhões de espanhóis. No fundo, aquilo que se aplaude no apagar uma certa memória histórica do franquismo é, nada mais nada menos, do que a utilização dos velhos mas conhecidos métodos estalinistas de subtracção à história daqueles que foram seus protagonistas e, mais ainda, num dado momento, os vencedores da história. Por isso, quando em Espanha se prepara a retirada do espaço público de toda a iconografia que possa ainda recordar ou evocar o franquismo, está-se a proceder da mesma forma que Estaline e os seus lacaios procederam ao ter subtraído sucessivamente da história da Revolução Bolchevique e dos primeiros anos da União Soviética os Trotskis, os Zinovievs, os Kamenevs ou os Bukarines. Trata-se, portanto, de uma imbecilidade, de um crime e de um absurdo que não se limita a envergonhar a democracia. Está a corrompê-la e a destruí-la. Mas enfim, e valha a verdade, é bom recordar que muitos daqueles que lutaram contra o franquismo e por isso morreram, durante e depois da guerra civil, odiavam-na tanto ou mais a democracia do que os seus verdugos. O mesmo pode ser dito em relação a muitos daqueles que aplaudem esta lei ou até a consideram excessivamente moderada. E isso é muito preocupante.

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