6.8.07

A avó Francelina

Se fosse viva cumpriria hoje 102 anos. Faleceu aos 98 em Lisboa. Nasceu num lugarejo chamado Barrocal, próximo da vila de São Bartolomeu de Messines. Gostava de João de Deus. Era das mais velhas entre uma dúzia de irmãos dos quais apenas meia dúzia sobreviveu à infância. Os pais morreram com a “pneumónica” logo depois da Grande Guerra. A República não a alfabetizou, mas foi uma das mulheres mais inteligentes que conheci. Ainda criança, deixada ao cuidado de uma avó, foi servir para Tavira. Casou com um sapateiro que se tornou alcoólico e lhe batia de tempos. Todos os dias a sua preocupação era ter como alimentar as filhas. Fugiu de Tavira no início da década de 1950, com três filhas costureiras que tinham estudado até à 4.ª classe. Primeiro esteve na Cova da Piedade, depois mudou-se para Campo de Ourique, em Lisboa, onde foi porteira. Casou a Fausta, a Aline e a Leonarda com, respectivamente, um motorista particular natural de Torres Vedras, um alfaiate de Baleizão e um pequeno comerciante filho de galegos. Os três estavam em Lisboa à espera de conhecerem moças sérias e casadoiras. O meu avô Amândio, que minha avó nunca deixou de amar e respeitar – porque afinal “nunca tinha matado ninguém” – juntou-se-lhe, ainda duas filhas permaneciam solteiras, em Campo de Ourique. Em finais dos anos 60 e início dos 70 levava-me a passear ao Jardim do Ultramar e à Praça do Império. Por essa altura eu visitava ocasionalmente o meu avô numa parte de casa onde vivia com a avó Francelina na Rua do Galvão, freguesia de Santa Maria de Belém. Era então empregada de limpeza num stand de automóveis da Ford juntou à Praça do Chile, e de onde me trazia catálogos impressos em bom papel e com fotos a cores. Fascinava-me o Ford Capri. Sempre votou PS e gostava do "bochechas", mas durante o PREC participou no saneamento do patrão que, anos depois, viu regressar à “empresa.” Reformou-se aos 75 anos com uma pensão mínima que, salvo erro, só a generosidade e a bem dita irresponsabilidade financeira dos mentores do “25 de Abril” e da democracia lhe proporcionaram. Cresci e vivi com ela quase 40 anos da minha vida, excepto quando à noite recolhia à sua “`parte de casa”, eu ia de férias para a Galiza ou ela se ausentava para Messines, normalmente em Setembro. Quando cheguei à adolescência adorava atender telefonemas de namoradas ou amigas minhas. Achava-me um tanto debochado. Conheceu um bisneto e teve dois netos “formados”. Uma vida no século XX português. Sempre a subir. Na geografia e na hierarquia social. Pouco, mas com firmeza e muita determinação. Tenho saudades suas. Um beijo, avó.

1 comentário:

Pedro Picoito disse...

Fernando, belíssimo texto. É claro que eu sou suspeito, porque também tenho avós algarvios (de Tavira e Cacela)...
Boas férias.