11.11.07

Armistício

Cumprem-se hoje 89 anos sobre o “Armistício” que pôs fim à Primeira Guerra Mundial (dias antes já a Bulgária, a Turquia e o Império Austro-Húngaro tinham saído de uma guerra que se tornara insustentável militar, política e socialmente). Quem, como eu, tenha sintonizado a meio da manhã a Sky News no canal 32 da TV Cabo na região de Lisboa, assistiu a uma cerimónia de homenagem a todos aqueles que, no Reino Unido e em boa parte dos países da Commonwealth, serviram nas Forças Armadas e morreram pelos seus países não apenas na guerra de 1914-18, mas em todos os conflitos militares em que esses mesmos países, mas acima de tudo o Reino Unido, estiveram ou ainda estão envolvidos. Não vou agora divagar sobre os méritos desta cerimónia em que se envolve toda a classe política britânica e de muitos estados membros da Comunidade Britânica, os veteranos de guerra, as suas viúvas, e boa parte da sociedade civil britânica e de países àquela comunidade, dando significado patriótico profundo a um dos poucos feriados que, por exemplo, os britânicos têm no seu calendário. Aliás, quem assistisse atentamente a esta cerimónia percebia facilmente algumas das razões pelas quais os britânicos têm tanta dificuldade em mudar do paradigma imperial e insular para o paradigma europeu expresso na União Europeia (entre outras coisas um vazio de “símbolos” e de “exemplos”).
Prefiro aqui sublinhar o carácter catastrófico da Grande Guerra, a começar pelo elevado número de mortos que provocou entre os súbditos de Jorge V, monarca de um império espalhado por todos os continentes. A experiência britânica na primeira guerra geral europeia do século XX, que foi para os britânicos muito mais mortífera do que a mediática Segunda Guerra Mundial, pôs fim a uma idade de ouro na história do império britânico e da Europa ao destruir cem anos de paz “quase” ininterrupta, e por ter sido o toque de finados de uma sociedade, de uma cultura e de uma civilização que, embora em mudança acelerada, assentavam em princípios que procuravam garantir o equilíbrio possível entre a tradição, que sobrevivera à revolução francesa e às guerras napoleónicas, e a modernidade trazida pela industrialização, pela rápida urbanização, pela primeira globalização da era industrial, pelo crescimento demográfico exponencial e pelo advento e consolidação do nacionalismo e do socialismo modernos.
Teria sido a guerra evitável tendo em conta as circunstâncias que a provocaram? Historiadores dizem que sim! Outros dizem que não! O que é certo é que a guerra de 14-18 mudou radicalmente e irreversivelmente o mundo. Tentou democratizá-lo sem êxito. Procurou recuperar, também sem êxito, o capitalismo industrial e financeiro sustentado no padrão-ouro. Transformou os EUA na primeira potência económica mundial ao mesmo tempo que enfraqueceu o Império Britânico e humilhou, por razões diferentes, franceses, alemães e russos. Acabou por procurar encontrar soluções políticas e diplomáticas que tornassem a guerra não apenas ilegal mas também impossível. Fracassou igualmente neste intento. Provocou duas revoluções na Rússia e, com isso, criou condições para que no maior império da história nascesse o primeiro regime socialista de inspiração marxista, facto que ajuda a perceber, ainda que não totalmente, o advento dos fascismos e do nazismo e, também, da Segunda Guerra Mundial. Alargou geograficamente os impérios coloniais europeus mas corrompeu os pressupostos políticos e ideológicos em que assentava o imperialismo e o colonialismo renascidos na segunda metade do século XIX.
Mas da experiência da Grande Guerra e do seu significado guardo na minha memória um testemunho cruzado sobre a dita. Henry Kissinger deixou escrito algures no seu Diplomacy que, em plena "revolução" Tatcher no início da década de 1980, se encontrou com Harold Macmillan, antigo primeiro ministro britânico de um governo conservador. Este ter-lhe-á confessado que assistia com horror e antipatia à forma como o (novo) Partido Conservador enfrentava, numa guerra sem quartel, os sindicatos que lutavam pela preservação de um modelo económico e social começado a construir ainda na década de 1920 e consolidado por sucessivos governos trabalhistas e conservadores nas décadas de 1930 a 1970. Para Macmillan, e segundo Kissinger, aqueles que nas ruas e nas empresas públicas ou privadas lutavam em prol da manutenção dos seus postos de trabalho e do seu modo de vida assente numa forte protecção social sustentada pelos impostos pagos pelos contribuintes não passavam dos netos dos que, como ele, tinham lutado, ficado estropiados ou morrido nas trincheiras da Flandres entre 1914 e 1918 e que por isso qualquer governo de Sua Majestade não tinha qualquer legitimidade moral para lhes exigir os sacrifícios que exigia e, sobretudo, lhes impunha. Ou seja, nenhuma experiência política e social no Reino Unido terá contribuído tanto para criar uma nação a partir de uma sociedade sempre muito dividida. As guerras têm muitas vezes, mais do que qualquer outra experiência colectiva, este enorme mérito. Unem em vez de separar.

2 comentários:

vallera disse...

Gostei muito de ler este teu artigo.
"Transformou os EUA na primeira potência económica mundial "
a longo prazo? ou a pequeníssimo prazo? Os roaring twenties duraram pouco...a seguir veio a Depressão, e os veteranos da guerra, bem como grande parte da população, caiu na miséria..

Fernando Martins disse...

Viva "Vallera"!
Os EUA tornaram-se, com a grande guerra, a maior e a mais importante economia à escala global. Passaram a credores dos europeus, quando antes eram devedores (especialmente dos britânicos). Apesar da "grande depressão", a economia norte-americana não saiu do tôpo. Afinal, os anos 30 foram péssimos para a economia em toda a parte, sendo que as economias menos abertas e, portanto, mais atrasadas sentiram menos a "coisa".
Um beijo.