A provável e talvez inevitável independência do Kosovo está, compreensivelmente, a baralhar muita gente e a mostrar como, também nestas coisas da autodeterminação e independência de "povos" e "nações", é muito difícil manter coerência política e ideológica. É sobretudo o caso daqueles que se opõem à eventualidade.
Basta que se olhe um pouco para a história para perceber que não existe nenhum argumento político capaz de impedir a criação de mais um estado nos Balcãs. Inviável, ou não, o futuro estado do Kosovo, a verdade é que não será o primeiro, nem sequer o mais inviável daqueles que foram criados depois de 1945. O mesmo argumento é válido se nos opusermos à sua independência por e considerar que será factor de transcendente instabilidade na região.
Parece-me a mim que dificilmente, se pode ter andado nas décadas de 1950 e 1960 a defender e a propor independência de tudo o que era território colonial nas Caraíbas, em África ou na Ásia, já para não falar, por exemplo, de Timor-Leste, e sustentar agora que a independência do Kosovo criaria um estado inviável nos Balcãs.
Há depois o argumento de que a independência do Kosovo é mais uma provocação gratuita à Sérvia e aos sérvios, nomeadamente ao amputar uma parte do seu território de grande importância histórica, ideológica e simbólica. No entanto, seria ridículo que depois da Sérvia ter sido amputada de quase tudo, se fizesse cerimónia com o Kosovo, ainda mais quando a "comunidade internacional", sem mandato da ONU, interveio militarmente contra a Sérvia no Kosovo para impedir o "genocídio" de kosovares mas, de facto, e em última análise, para retirar a Belgrado a capacidade de exercer a sua soberania, internacionalmente reconhecida, sobre uma parte do seu território.
Existe ainda o argumento segundo o qual o reconhecimento europeu e internacional, nomeadamente norte-americano, de uma independência do Kosovo, abrirá uma caixa de Pandora naquelas regiões da Europa, nomeadamente na nossa vizinha Espanha, em que existem fortíssimas tensões nacionalistas e independentistas. Para o bem, ou para o mal, independente o Kosovo, Catalunha ou País Basco também o deverão ser. Porém, a verdade é que a dita "caixa", no que diz respeito aos eventos na antiga Jugoslávia, está aberta há quase vinte anos e, naquilo que “concerne” à Espanha, não só problema nacionalista é mais antigo, como não é liquido que vá degenerar em independências indiscriminadas provocadas por contágio. Por exemplo, depois da balcanização da Europa que teve lugar após o fim da Primeira Guerra Mundial, muitas nações europeias e não europeias ficaram, e ainda permanecem, sem estado. Ora se a partir de 1919 se abriram tão generosamente as portas aos nacionalismos (como nas décadas de 1940, 1950 e 1960 com a vaga descolonizadora), mas todas as questões nacionais não foram resolvidas e a aparente ou real loucura criação de novos estados acabou por ser controlada, não é líquido que seja agora Kosovo independente a redefinir radicalmente as fronteiras europeias ou outras. Sendo certo que a balcanização de Espanha é uma possibilidade e, até, provavelmente, uma possibilidade a evitar, muito mais do que uma independência do Kosovo contribuirá directa ou indirectamente para que tal possa vir a acontecer. No entanto, a balcanização de Espanha só será efectivamente dramática se decorrer de uma vitória do terrorismo sobre a democracia, cenário que no Kosovo nunca se colocou (houve terrorismo de parte a parte e democracia em parte alguma). Paralelamente, seria estranho que não se ponderasse a forte possibilidade de a União Europeia estar condenada a integrar no seu seio aquilo que se propõe agora, e transitoriamente, fraccionar.
Finalmente, há quem se refugie, para defender a integridade territorial da Sérvia, nos
perigos que encerra uma rectificação de fronteiras como a que está em marcha na Sérvia e no Kosovo. Ora na verdade a história da Europa tem sido feita, sempre foi feita, a partir da rectificação de fronteiras impostas pelos mais fortes. E diga-se, aliás, para o bem ou para o mal, que este não é sequer apenas um problema europeu naquilo que aos último 50 ou 60 anos diz respeito. Por exemplo, a comunidade internacional, que integrou “sabiamente” a Eritréia na Etiópia depois da Segunda Guerra Mundial, reconheceu o seu direito à autodeterminação e independência há meia dúzia de anos após décadas de guerra civil. A mesma comunidade internacional que reconheceu um único estado paquistanês – um ocidental e um outro oriental –, aceitou décadas mais tarde a inevitabilidade e a bondade da criação do Bangladesh a partir do antigo Paquistão oriental e após vários anos de guerra civil. A comunidade internacional também pouco ou nada faz para impedir a integração do Saara ocidental em Marrocos (outra redefinição de fronteiras), como não mexeu uma palha para evitar aquilo que foi uma violação ilegal e violenta do princípio de não revisão unilateral de fronteiras quando, em Dezembro de 1961, tropas da União Indiana invadiram e ocuparam o "Estado Português da Índia." E por aí fora…
No entanto, apesar de tudo isto, devo confessar que nunca simpatizei tanto com as posições da Sérvia. A Sérvia e os sérvios têm sido ultimamente vítimas maiores do cinismo, da cobardia e da chantagem europeia cujo último momento alto foi a promessa feita a Belgrado de acelerar a sua entrada na UE a troco da aceitação pelo governo e pelo povo sérvio da independência do Kosovo. Este episódio, aliás, fez-me lembrar as propostas que os EUA, no tempo de JFK, faziam ao governo português para que este aceitasse a independência de Angola e, um pouco mais tarde, de todas as "províncias ultramarinas" de então. Para Kennedy, mas não para Salazar, a questão colonial portuguesa era, ou devia ser uma questão de dinheiro. A troco de uns milhões de dólares – uma espécie de fundos estruturais avant la lettre – deixava-se o império e tudo passaria a viver na paz do senhor.